Jorge Amado

O país do Carnaval, Cacau e Suor podem ser encarados como obras de uma adolescência fecunda, escritas entre os 18 e os 22 anos de idade. Mas Jubiabá, ainda que trabalho de um escritor bastante jovem, parece significar um corte - ou um salto. O romance amadiano como que ganha uma outra dimensão. Publicado em 1935, é um retrato vigoroso da vida negra e mestiça pelos meandros da Cidade da Bahia e seu Recôncavo. Seu impacto não só foi imediato, mas forte. No Brasil e no exterior. O escritor francês Albert Camus, por exemplo, não mediu palavras para expressar a sua admiração: “Um livro magnífico e estonteante”. E mais: “Poucos livros se afastam tanto dos jogos gratuitos da inteligência. Eu vejo aqui, ao contrário, uma utilização comovente de temas folhetinescos, um abandono à vida no que ela tem de excessivo e de desmesurado”. Acompanhando as revoltas e reviravoltas do órfão Antonio Balduíno - que vai de mendigo a músico, de capoeirista a boxeador, de trabalhador nas plantações de fumo do Recôncavo a inflamado orador sindical -, Camus conclui: “Jubiabá é um romance onde toda a importância é dada à vida... ao conjunto de gestos e gritos, a uma certa ordenação de impulsos e desejos, a um equilíbrio do sim e do não, a um movimento de paixão que não precisa de comentários”.




Em 1936, Jorge Amado é preso pela primeira vez. Passa dois meses na cadeia, no Rio de Janeiro, por conta de suas atividades políticas. Ao deixar o presídio, sem um tostão no bolso, recebe uma proposta do editor José Olympio: 500 mil réis para escrever um novo romance. Jorge Amado topa. E em quinze dias - ou, mais exatamente, quinze noites - Mar morto está pronto. É a história de Guma, criança criada no cais da Bahia, e de seu amor por Lívia, a meiga Lívia, que, depois da morte do amado, torna-se ela mesma mestra de saveiro, deslizando à flor do mar. Na abertura do livro, aliás, o próprio Jorge Amado já vai avisando aos seus leitores: "Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia. Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados, os malandros sabem essas histórias e essas canções. Eu as ouvi nas noites de lua no cais do Mercado, nas feiras, nos pequenos portos do Recôncavo, junto aos enormes navios suecos nas pontes de Ilhéus. O povo de Iemanjá tem muito que contar". E foi em meio aos floreios marinhos desse livro de luares e de estrelas, sob o signo de Iemanjá dos cinco nomes, que o poeta Dorival Caymmi pescou palavras para ir compondo uma canção cristalina, É doce morrer no mar — canção destinada a encantar para sempre a sensibilidade musical brasileira.


O tempo vai fechando de vez no país. É a ditadura do Estado Novo que se implanta. Recolhido na cidade de Estância, no interior de Sergipe, Jorge Amado começara a escrever um outro livro, terminando a sua redação já a bordo do navio Rakuyo Maru, em viagem para o México. É Capitães da areia.
Uma história dos meninos-de-rua da Bahia, na década de 30. Narrativa do amor de Dora e Pedro Bala. Peripécias do bando de menores que perambula perigosamente pelas ruas e pelo cais de Salvador, cidade “negra e religiosa”, onde se projeta a personalidade da ialorixá Aninha, mãe-de-santo do Ilê Axé Opô Afonjá. Dora morre, doente, no trapiche enluarado. Pedro Bala é preso, foge, mete-se em greves de estivadores, até que se converte em “militante proletário, o camarada Pedro Bala”. O problema é que o livro é publicado em 1937, logo em seguida à implantação do Estado Novo, regime violentamente anticomunista. Assim, a edição é apreendida - e exemplares do livro são queimados em praça pública, na Cidade da Bahia, por representantes da ditadura. Mas de nada adiantou. Quando pôde voltar à cena, Capitães da areia conquistou o grande público e é ainda hoje um dos maiores sucessos de Jorge Amado.




Jorge Amado refugia-se na Argentina. Volta para o Brasil somente em 1942. Mas para ser novamente preso. Três meses de detenção no Rio de Janeiro. Por determinação da polícia, passa a viver em Salvador, onde escreve Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus, publicados, respectivamente, em 1943 e 1944. Bem vistas as coisas, Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus sugerem uma dupla. São livros que se irmanam em temas e problemas. Romances complementares, se assim se pode dizer, falam de terras virgens conquistadas para a lavoura e da formação da sociedade do cacau, transformando de modo radical uma região até então econômica e culturalmente inexpressiva. É o mundo de Ramiro Bastos e Juca Badaró, do feiticeiro Jeremias, do negro Damião, de advogados interioranos, capangas e prostitutas. Mundo violento, simultaneamente rico e miserável, paraíso dos chamados “coronéis do cacau”, inferno dos camponeses suarentos e esfarrapados. Mas há uma diferença. Terras do sem fim tematiza os primeiros tempos da região, as lutas sangrentas em torno do estabelecimento da propriedade. São Jorge dos Ilhéus, por sua vez, focaliza uma época posterior, quando as vilas já se urbanizaram, a produção deslanchou e as atividades exportadoras fizeram a sua festa.



Em 1956, ocorreu um fato fundamental: o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, desfechando críticas e denúncias contra a ditadura de Stálin. Jorge Amado vê que vai ficando definitivamente para trás o dogma de que a literatura não deveria mais ser do que um instrumento ideológico, partidário. Ele está agora no Brasil, no Rio de Janeiro. E quando faz a sua rentrée literária, em 1958, com a publicação de Gabriela, cravo e canela, quase que sugere um novo Jorge Amado. É claro que não abole, pura e simplesmente, os vínculos com a sua obra anterior. Mas é outro o olhar que dirige às coisas do mundo e da vida. Permanece socialista, mas acentuando, sempre com maior ênfase, o qualificativo “democrático”. Gabriela, de resto, é um retorno ao chamado “ciclo do cacau”. Ao universo de coronéis, jagunços, prostitutas e trambiqueiros de calibre variado, que desenham o horizonte da sociedade cacaueira. No caso, a Ilhéus rica da década de 20, ansiando progressos e avançando na noite litorânea, entre bares e bordéis. A perspectiva, no entanto, é claramente distinta. Antes que se articular em função do utopismo marxista, o livro se deixa imantar pelo seu presente. E é uma explosão, uma folia de luz e cor e som e sexo e riso. O sucesso é imenso. E a trama do romance vai se desprender das letras, da moldura tipográfica, para virar filme, telenovela, fotonovela, quadrinhos, canção.




Em 1959, Jorge Amado publica, na revista Senhor, um texto que alguns consideram a sua obra-prima; outros, indo além, dizem que é a melhor novela de toda a literatura brasileira. Trata-se de A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. E o que se tece aí é a metamorfose de Joaquim em Quincas. Simples. Aos 50 anos de idade, o irrepreensível cidadão Joaquim Soares da Cunha - funcionário público exemplar, bom pai e bom esposo - resolve dar um murro na mesa. Chutar pra cima as velhas regras, princípios e condutas. Deixa ele, então, casa e família e se muda para uma pocilga no Tabuão, a fim de cair na farra e na gandaia, transformando-se em Quincas Berro Dágua, cachaceiro supremo, jogador imbatível, mimo das mulatas, rei dos vagabundos da Bahia. Um belo dia, Quincas é achado morto em seu quarto. Avisada, a família entra em campo para reconverter Quincas em Joaquim, dando-lhe enterro decente e, quem sabe, conseguindo apagar da memória os anos de sua maluquice. Mas o plano se frustra. Velhos amigos de Quincas acabam ministrando cachaça ao finado. É o suficiente para que Quincas se levante e saia com eles para a grande esbórnia final. Acabam colhidos por um temporal, no meio do mar. Quincas se ergue e, entre relâmpagos, se atira do barco, para ter o enterro que sempre quis - no meio das águas.